Lição 4 – Justificação pela fé
Pr. Matheus Cardoso
Editor-assistente dos livros do Espírito de Profecia
na Casa Publicadora Brasileira
Quando Pedro agiu de forma contrária ao que ele mesmo acreditava (2:11-13), Paulo o repreendeu e o fez recordar-se de sua crença como cristão (v. 14). Em Gálatas 2:15-21, Paulo apresenta as razões que justificam sua dura resposta.
Resumo da semana: Paulo relembrou a Pedro que a justificação é somente pela fé. Ou seja, somos perdoados de nossos pecados, aceitos por Deus e passamos a fazer parte de Seu povo somente pela fé no sacrifício de Cristo, e não por nossa obediência (que é imperfeita) à lei de Deus. Nossa obediência à lei será o resultado da justificação pela fé já obtida.
O que é justificação pela fé?
Em sua resposta a Pedro, Paulo disse que “ninguém é justificado pela prática da lei, mas mediante a fé em Jesus Cristo” (Gl 2:16).1
Certa vez, numa reunião da igreja, uma garotinha perguntou a Ellen G. White: “A senhora vai falar nesta tarde?” “Não, nesta tarde, não”, ela respondeu. A menina falou: “Que pena! Então, por favor, peça ao pastor que use palavras fáceis. Diga-lhe que nós não entendemos palavras compridas, como ‘justificação’ e ‘santificação’. Não sabemos o que essas palavras querem dizer.”2
Assim como aquela garota, muitos não entendem o que esses conceitos significam. Atualmente, “justificação” é uma expressão teológica rebuscada, desconhecida para a maioria das pessoas.
“Justificação” é uma palavra relacionada ao tribunal. Significa ser absolvido, declarado justo, considerado inocente diante de acusações. Ser justificado é o oposto de ser condenado (Êx 23:7; Dt 25:1; Mt 12:37).
No contexto bíblico, justificação tem um sentido específico. Todas as pessoas são pecadoras (Rm 3:23). Tudo o que merecem é o salário do pecado, a morte eterna (Rm 6:23; Ef 2:3). Todos são culpados perante a lei de Deus (Rm 3:19; Gl 3:10). No tribunal divino, a sentença de cada ser humano é: “Culpado!”
No entanto, quando cremos em Jesus, somos perdoados de nossos pecados, somos aceitos por Deus e passamos a fazer parte de Seu povo. Isto é, somos justificados. Justificação é o mesmo que ser perdoado dos pecados (At 13:38, 39; Rm 4:6-8) e ser libertado da condenação da lei (Rm 8:1, 2). O resultado disso – como Paulo tanto enfatizou – é a obediência a toda a lei de Deus, que inclui o sábado (Rm 3:31; 8:4; 13:8-10; Gl 5:14; 6:2).
De que lei Paulo está falando?
Paulo diz que “o homem não é justificado por obras da lei” (Gl 2:16, ARA). Algumas pessoas acham que isso se refere apenas às leis cerimoniais. Mas, em Gálatas, “lei” é “toda a coleção dos mandamentos de Deus dada ao Seu povo através de Moisés”, “sejam morais ou cerimoniais” (Lição de Adultos, segunda-feira). Portanto, os Dez Mandamentos estão incluídos.
“Obras da lei” (ARA) são as obras ou atos que a lei requer de nós.3 Em outras palavras, a obediência aos mandamentos da lei, a “prática da lei” (NVI).
Conforme já vimos, o objetivo de Gálatas não é mencionar quais mandamentos do Antigo Testamento não precisam ser obedecidos pelos cristãos. O problema é muito maior do que tentar alcançar a justificação por meio da circuncisão ou de outras leis cerimoniais. É impossível ser justificado pela obediência a qualquer parte da lei – mesmo aos Dez Mandamentos!
O que não é legalismo?
É verdade que o legalismo era um dos maiores problemas dos judeus em geral do tempo de Jesus e dos apóstolos (Rm 9:30–10:4).4
Mas precisamos ser cuidadosos a fim de evitar uma compreensão distorcida a respeito do que é legalismo.
1. Legalismo não é necessariamente obedecer à lei de modo rigoroso – É impossível ser obediente “demais”. De acordo com Jesus, Seus seguidores não devem ter um padrão de obediência inferior ao dos zelosos fariseus, e sim “muito superior” ao deles (Mt 5:19, 20). A lei deveria ser obedecida externamente de modo tão rigoroso quanto os fariseus ensinavam (Mt 23:3), mas, acima disso, Deus pede a obediência interior, vinda do coração transformado por Ele (Dt 6:5-9; 10:16; 30:6).
Portanto, quem obedece aos mandamentos de forma apenas exterior e mecânica, esquecendo-se da transformação interior, não está guardando a lei de forma nenhuma! (Gl 4:21; 6:13; Tg 2:10). Os legalistas, em vez de se apegarem demais à lei, em realidade se afastam do verdadeiro sentido dela.
Como veremos neste trimestre, Paulo ensinava que o sacrifício de Cristo tornou a obediência à lei ainda mais profunda e significativa. Cristo morreu precisamente para que pudéssemos guardar a lei de acordo com a vontade de Deus (Rm 8:3, 4). Depois da cruz, Deus enviou o Espírito Santo em Sua plenitude, para escrever Sua lei em nosso coração (Hb 8:10; 10:16; cf. Gl 3:14; 5:14, 18).
2. Legalismo não necessariamente é guardar uma “infinidade” de pequenos mandamentos dados por Deus – O Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) apresenta 613 preceitos, e obviamente o propósito de Deus era que cada um deles fosse obedecido “à risca” (Sl 119:4, ARA). Alguns estudiosos afirmam que o Novo Testamento contém ainda mais regulamentos que o Antigo. E os escritos de Ellen G. White, por sua vez, apresentam um número adicional de orientações dadas por Deus. Então, o problema não está no elevado número de mandamentos, nem em quão detalhados eles são. Deus deu cada norma para que realmente fosse obedecida.
Paulo nunca falou contra qualquer dos mandamentos dados por Deus. Em vez disso, ele costumava citar mandamentos específicos da lei, mostrando que a ela continua a ser um guia para a vida (Rm 13:9; 1Co 10:14, 20, 21; Ef 6:1, 2). O próprio Paulo apresentava listas de normas para o comportamento cristão (Rm 12–13; Gl 5–6; Ef 5–6; Cl 3). Portanto, o apóstolo nunca viu nenhum problema na existência de “regras”.
3. Legalismo não consiste necessariamente em seguir normas da tradição judaica – Os judeus da época de Jesus enfrentavam a mesma dificuldade que nós: a Bíblia não apresenta instruções específicas para todas as situações da vida. Muitas mudanças haviam ocorrido na sociedade desde que Deus havia dado Seus mandamentos a Moisés, 1.500 anos antes. Por isso, o objetivo das tradições dos judeus era ampliar os mandamentos do Antigo Testamento a situações concretas de sua própria época. Em vez de ser uma “tradição morta”, o objetivo da tradição judaica era tornar os ensinos bíblicos relevantes para outros tempos.
Por causa dessas regras, muitos dizem que os judeus, principalmente os fariseus, eram legalistas. É verdade que muitas dessas regras eram exageradas e desnecessárias, mas não era primariamente por isso que os judeus em geral eram legalistas. Jesus Se opôs a várias tradições, não por serem legalistas em si mesmas, e sim porque invalidavam os próprios mandamentos bíblicos (Mt 15:3-6).
A prática de ampliar os mandamentos bíblicos não se limita aos judeus. Alguns cristãos escolhem, voluntariamente, seguir um estilo de vida mais rígido que o apresentado na Bíblia (cf. Mt 19:11, 12; Rm 14:5; 1Co 7:7-9; 10:28, 29), e não existe nenhum problema nisso. Alguns adventistas, por exemplo, decidem escutar apenas música sacra tradicional ou não usar leite e ovos em sua alimentação. Essas pessoas não são necessariamente legalistas. Por uma questão de personalidade, sempre haverá alguns cristãos “mais rigorosos” e outros “mais flexíveis” em questões que não estão explícitas na Bíblia e/ou que não envolvem princípios bíblicos. Mas o primeiro grupo não é necessariamente mais legalista, nem o segundo, menos consagrado.
4. O legalismo judaico não era necessariamente a obediência às leis cerimoniais – É certo que, depois da morte de Cristo, não mais precisamos guardar as leis relacionadas ao templo (Dn 9:27; Hb 10:1-4). Mas o problema do legalismo não era primariamente esse. Até mesmo Paulo, que falou tanto contra as “obras da lei” como meio de justificação, viveu até a morte como judeu. Portanto, observava as festas judaicas, frequentava o templo e circuncidou seu assistente judeu Timóteo (At 16:3; 20:16; 21:17-26; 25:8; 28:17). Os demais cristãos judeus seguiam as mesmas práticas (At 2:46; 3:1; 21:20).
Em Gálatas (e no restante de suas cartas), o apóstolo não condena os rituais do templo em si nem qualquer outro aspecto das leis cerimoniais. Essa não era a preocupação dele. A circuncisão era somente a “ponta do iceberg”, porque o problema real era muito mais profundo. Por isso, na maior parte de Gálatas, Paulo nem sequer menciona a circuncisão, mas trata da lei como um todo (o que inclui os Dez Mandamentos). O principal erro dos oponentes de Paulo era apresentar a obediência à lei (moral e/ou cerimonial) como meio de justificação, em vez de ensinarem que a guarda dos Dez Mandamentos é a consequência da justificação pela fé.
Então, o que é legalismo?
Paulo jamais falou contra a obediência a qualquer parte da lei de Deus (o que inclui o sábado). O problema não era esse. Mas, se a obediência não é em si mesma sinônimo de legalismo, então o que é legalismo?
O legalismo judaico – Os judeus em geral acreditavam que o ser humano tem a capacidade de guardar a lei perfeitamente. Portanto, por meio da obediência, uma pessoa pode ser aceita diante de Deus e passar a fazer parte de Seu povo (Rm 2:17; 9:31, 32; 10:2, 3).
Na teologia judaica, o conceito de justificação estava ligado ao conceito de recompensa. Muitos usavam uma balança para representar o juízo de Deus. Uma pessoa justificada (absolvida) no juízo era aquela cuja obediência (ou boas obras) pesava mais que suas transgressões (cf. Lc 18:10-14). A misericórdia de Deus apenas adicionava mérito àqueles que a pessoa já possuía.
O legalismo cristão – O legalismo mantido por muitos dos primeiros cristãos não era igual ao defendido pelos judeus em geral. Os cristãos legalistas acreditavam na graça de Deus e no sacrifício de Cristo. O problema é que ensinavam que a obediência à lei (inclusive aos Dez Mandamentos) seria necessária para a justificação (At 15:1, 5; 21:21). Eles não negavam o fato de que somos salvos pelo sacrifício de Cristo, mas a cruz só podia salvar aqueles que se tornassem parte do povo da aliança através da obediência a toda a lei.
Para aqueles cristãos judeus, o sacrifício de Jesus somente acrescentaria peso ao prato da obediência na balança do juízo. Essas pessoas acreditavam que “a fé não era suficiente por si só; ela devia ser complementada com a obediência, como se a obediência acrescentasse algo ao ato da justificação” (Lição de Adultos, terça-feira). Portanto, a justificação era uma mescla entre a graça de Deus e a obediência à lei. Isso é o que Paulo tinha em mente quando disse que “o homem não é justificado por obras da lei” (Gl 2:16, ARA) ou “pela prática da lei” (NVI).
Aplicações práticas
O legalismo é mais profundo do que a maioria imagina – Para muitos, ser legalista é ter um comportamento rigoroso demais, deixando de fazer um elevado número de coisas. Com isso, as pessoas “mais equilibradas” se tranquilizam com o pensamento de que estão muito distantes do legalismo, já que dão tanta atenção a normas e regras.
Ao falarmos anteriormente sobre o que não é legalismo, não estamos defendendo uma compreensão extremista sobre o comportamento. É verdade que não podemos considerar todas as normas divinas em pé de igualdade (cf. Mt 23:23). A guarda dos Dez Mandamentos, por exemplo, é uma exigência para que alguém seja batizado. Mas não podemos fazer o mesmo com o ideal divino do vegetarianismo, por mais importante que seja essa orientação. Também precisamos cuidar para não confundir costumes culturais (corretos ou não) com a vontade de Deus.
Mas, no comentário desta semana, tentamos mostrar que legalismo é algo muito mais sutil e, portanto, muito mais grave. É mais do que seguir uma “infinidade” de orientações dadas por Deus ou mesmo seguir normas que não estão explícitas na Palavra de Deus.
Legalismo não é tanto o número de normas que seguimos, nem quão rigorosamente vivemos, mas nossa atitude diante das orientações de Deus, qual função acreditamos que Sua lei desempenha em nossa vida. Legalismo não é tanto seguir mandamentos não bíblicos, mas seguir mandamentos bíblicos por motivos errados. Legalismo não é uma questão externa, mas interna.
Por essa razão, mesmo um adventista que se considere “mais equilibrado” pode ser legalista. Talvez ele considere legalistas aqueles que tentam seguir um elevado número de normas, não consomem determinados alimentos nem frequentam certos lugares. E, em muitos casos, esse indivíduo está correto em sua avaliação. Porém, é possível que esse “mais equilibrado” acredite que a obediência aos “requisitos mínimos” da vontade de Deus contribua para sua salvação. Se for assim, ele será tão legalista quanto o mais fanático extremista. Portanto, ninguém está isento do legalismo.
De qualquer modo, como o legalismo tem mais que ver com nossa atitude diante das recomendações de Deus, deveríamos pensar duas (ou mais) vezes antes de julgar os outros, de considerá-los legalistas, apenas por suas ações (cf. Mt 7:1, 2). Em vez de aplicar as orientações de Gálatas (como o restante da Bíblia) a outras pessoas, precisamos aplicá-las a nós mesmos.
1. Os textos bíblicos são extraídos da Nova Versão Internacional, salvo outra indicação.
2. Veja Ellen G. White, Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes, p. 254.
3. Veja T[homas] R. Schreiner, “Obras da lei”, em Dicionário de Paulo e Suas Cartas, ed. Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin e Daniel G. Reid (São Paulo: Vida Nova / Paulus / Loyola, 2008), p. 883-887.
4. As seções “O que não é legalismo?” e “Então, o que é legalismo?” se baseiam em aulas do Dr. Wilson Paroschi, professor de Teologia no Unasp, campus Engenheiro Coelho.